sábado, 29 de dezembro de 2018

"Somos o elefante na casa de porcelana" (Miguel B. Araújo)

Miguel Bastos Araújo, um investigador que se dedica-se há duas décadas ao estudo do efeito das alterações climáticas na biodiversidade, venceu o Prémio Pessoa 2018.  É um excelente sinal que um prémio destes se volte para alguém das ciências e sobretudo das ciências do ambiente. PARABÉNS!

Desde que navego pela blogosfera que tenho aprendido sobre temas ambientais com Miguel B. Araújo, com os seus textos ponderados e extremamente bem fundamentados, sobretudo no blogue AMBIO -blogue de Reflexão sobre Ambiente e Sociedade . Este blogue "Ambio",  foi provavelmente o primeiro blogue português dedicado ao Ambiente, e tudo indica ter sido o Miguel B. Araújo a criá-lo ainda no milénio passado ( em 1999), pois nos primeiros anos as publicações eram todas suas.  O blogue posteriormente teve novos contribuidores, e desde 2016 tem estado parado,  mas as suas publicações continuam na net, muitas ainda se mantém com grande atualidade.

Na sequência do Prémio Pessoa, o Expresso publicou na Revista uma interessante entrevista a Miguel B. Araújo, de 8 páginas na edição escrita (de 22/12/2018).

O texto que se segue é um extracto dessa entrevista "Trabalhar em ciência é como ser uma atleta de alta competição" (por Carla Tomás e Tiago Miranda) , que vale a pena ler na íntegra.  

«A última conferência mundial do clima [COP24] não correspondeu à urgência pedida pelos cientistas. Como vê este resultado?
Não olho para esta COP em particular. Como cientista, tenho de ter uma perspetiva mais a longa distância. O comboio está a andar e é imparável. António Guterres disse que não há plano B nem planeta B, e é verdade. Como tal, este é o caminho. Os sectores que dependem do consumo de carbono estão conscientes de que vão ter de mudar de vida, mas querem tempo para se adaptar. Os atrasos devem-se a essa estratégia de querer ganhar tempo.

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Recusa o discurso catastrofista?
Estou consciente de que a crise é grave, mas um discurso catastrofista não serve de muito. Serve para fazer notícias, para que eventualmente algumas pessoas mudem comportamentos, mas também gera uma certa apatia se o discurso for repetido ano após ano. A catástrofe vem aí e é quase silenciosa quanto à extinção das espécies. Em todas as crises há vantagens e desvantagens, e as desvantagens são muito maiores do que as vantagens, mas não devemos pintar o cenário de branco ou de preto.

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As alterações climáticas estão mais na agenda do que a proteção da biodiversidade. Porquê?
Porque apesar de ambas poderem afetar a nossa sobrevivência no planeta... a extinção das espécies é mais difícil de explicar.

E como a explicaria de forma simples?
Existe uma explicação utilitarista e outra não utilitarista. Quem aprecia a biodiversidade pensa na dimensão ética e moral e não na perspetiva utilitarista. A ética e a moral comandam a vida das civilizações, e não devemos esquecer essa dimensão. É considerado imoral que haja uns que têm muito dinheiro e outros que não têm nenhum. Criaram-se mecanismos de redistribuição de riqueza, inventou-se a social-democracia e o comunismo como formas de tentar desvanecer essas assimetrias sociais ou como mecanismo de solidariedade geracional. Brundtland acrescentou que essa solidariedade também tem de existir para os que hão de vir.

E em relação à biodiversidade?
Imagem de Jeremy Cohen obtida aqui
Em relação a biodiversidade, Wilson defende que nós, seres humanos, temos um instinto natural de amor pela vida que extravasa a nossa própria vida. Há muitas pessoas que valorizam a natureza e outras formas de vida sem verem nisso um valor económico ou de utilidade. Depois existe o discurso monetário. Quanto valem os serviços dos ecossistemas? Quanto valem os insetos que polinizam as plantas e nos permitem ter comida para comer? O que seria o mundo sem abelhas? Isso é fácil de comunicar. Se há quebras brutais de peixes nos oceanos que obrigam a limitar a pesca, é mau para nós e é mau para toda a cadeia trófica, que afeta o ciclo dos ecossistemas, nomeadamente o ciclo do carbono. Tenho estado a trabalhar ultimamente nestas cadeias tróficas. Alterar algumas peças deste puzzle pode ter efeitos dramáticos em toda a dinâmica do ecossistema. Afeta a capacidade de absorção do carbono e o grau de acidificação do oceano. São muitos elementos encadeados, e nós somos o elefante na casa de porcelana. Vamos partindo coisas e levando espécies à extinção e não nos apercebemos sequer das consequências que isso tem.

Já entrámos na sexta extinção em massa e estamos a carregar no acelerador?
Sim, mas é um processo geológico que vem de longe. Iniciou-se quando os humanos saíram de África, há cerca de 100 mil anos, e começaram a colonizar outros continentes com impactos brutais. Agora estamos na quarta etapa desta sexta extinção em massa, com a atividade humana a interferir com alterações globais e o planeta a enfrentar a extinção de espécies a um ritmo ainda mais sangrante. Estamos a alterar os ritmos bioquímicos do planeta a uma escala global.

O que dizem as projeções em que tem trabalhado?
As projeções são pessimistas. As zonas polares estão em vias de desaparecer e tudo o que é fauna polar, incluindo o urso polar, também. Não só porque desaparece o habitat mas também porque passam a ter de competir por esse habitat com uma fauna que vem de sul. A questão é saber quando se irão extinguir. E na realidade só conhecemos uma ínfima parte da biodiversidade do nosso planeta.
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Vamos a tempo de travar as consequências das alterações climáticas e a extinção de espécies?
Não tenho uma bola de cristal. Se olharmos para o que fizemos no passado, o que estamos a fazer e o que projetamos para o futuro, vemos que não vamos a tempo. Eu procuro ter uma abordagem otimista, porque se não a tiver o melhor é arrumar as botas. Sou otimista no sentido em que acredito que a Humanidade, em algum momento, vai aperceber-se que tem de mudar de vida.
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Os portugueses dizem estar preocupados com as alterações climáticas, mas não têm a mesma atitude em relação à conservação da biodiversidade. Porquê?
Diferentes culturas no planeta têm abordagens diferentes. A natureza no Mediterrâneo é muito agreste e trabalhosa e vista como algo utilitário. Já na Índia, onde há mais misticismo em relação à natureza, é muito o local onde estão os deuses. A natureza é por isso reverenciada.
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Fonte do texto transcrito e das fotos de Miguel B. Araújo: https://leitor.expresso.pt/semanario/semanario2408/html/revista-e/-e/Trabalhar-em-ciencia-e-como-ser-um-atleta-de-alta-competicao  (https://expresso.sapo.pt/Capas/2018-12-21-Miguel-Bastos-Araujo-na-Revista-E)

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