sábado, 2 de novembro de 2013

"Somos a primeira pessoa do plural" - por José Luís Peixoto

Imagem do filme Baraka

por José Luís Peixoto, dezembro 2011

«Estamos tão perto uns dos outros. Somos contemporâneos, podemos juntar-nos na mesma frase, conjugarmo-nos no mesmo verbo e, no entanto, carregamos um invisível que nos afasta. Ouvimos os vizinhos de cima a arrastarem cadeiras, a atravessarem o corredor com sapatos de salto alto, a sua roupa molhada pinga sobre a nossa roupa a secar; ouvimos a voz dos vizinhos de baixo, dão gargalhadas, a nossa roupa molhada pinga sobre a roupa deles a secar; cheiramos as torradas dos vizinhos do lado, ouvimo-los a chamar o elevador e, no entanto, o nosso maior problema não é apenas não nos reconhecermos na rua. O nosso problema grande é estarmos convencidos que os problemas deles não nos dizem respeito. A nossa tragédia é acharmos que não temos nada a ver com isso.

Há três ou quatro anos, caminhava com um conhecido no aeroporto. De repente, ouviu-se um estalido. Ele agarrou-se ao peito com as duas mãos, caiu de joelhos e, pálido, esperou por morrer. Não morreu. Tinha-lhe rebentado um isqueiro no bolso da camisa. Aliviado, encostado a um balcão, a beber um copo de água, explicou que esse ardor repentino e esse susto pareceram-lhe um ataque cardíaco. Nunca tinha tido um ataque cardíaco antes, por isso confiou em descrições vagas, a que nunca tinha realmente prestado muita atenção.

Há alguns anos também, talvez um pouco mais do que três ou quatro, tinha acabado de participar num jantar cordial, reconfortante. Toda a gente estava bem disposta, à porta dos anfitriões, longa despedida, graças, à espera de táxi. De repente, tocou o telefone de um senhor com quem tinha estado a conversar durante todo o serão. Ninguém reparou nesse telefonema até ao momento em que o senhor começou a chorar convulsivamente. Ficámos todos a olhar sem saber como chegar até ele. Tínhamos braços, estendíamo-los na sua direcção, mas continuavam distantes.

Irritamo-nos com a existência uns dos outros. Fazemos sinais de luzes àquele homem com setenta anos, num carro dos anos setenta, que anda a setenta quilómetros por hora na auto-estrada. Contrariados, esperamos por aquela pessoa que atravessa a passadeira, enchemos as bochechas de ar e sopramos. Impacientes, batemos no volante. Daí a minutos, depois de estacionarmos o carro, somos essa pessoa a atravessar a passadeira. Da mesma maneira, daqui a algum tempo, não muito, seremos esse homem com setenta, dos setenta, a setenta. O tempo passa. Se deitarmos lixo para o chão, alguém o apanhará.

Um amigo que teve um AVC, que passou por uma reabilitação profunda, que enfrentou a morte e a paralisia, depois de anos de fisioterapia, depois de esforço gigante e sofrimento gigante, falou-me da forma como esse susto muda tudo. Passa-se a apreciar aquilo que realmente importa. A imensa maioria das preocupações transformam-se em luxos ridículos, desprezíveis, alimentados pela cegueira. Após essa experiência de quase morte, ganha-se uma nitidez invulgar, que, no entanto, esteve sempre lá. Para percebê-la, bastava levar a sério a promessa de transitoriedade de tudo e, também, levar a sério essa palavra, esse planeta: o amor. Ao ouvi-lo, fui capaz de entender aquilo que dizia. Depois, também fui capaz de entender quando me disse: mas, sabes, ao fim de algum tempo, esquecemo-nos, voltamos a tomar tudo por garantido e voltamos a cometer os mesmos erros.

Repito para mim próprio: estamos tão perto uns dos outros. Não há nenhum motivo para acreditarmos que ganhamos se os outros perderem. Os outros não são outros porque levam muito daquilo que nos pertence e que só pode existir sendo levado por eles. Eles definem-nos tanto quanto nós os definimos a eles. Eles são nós. Eles somos nós. Se tivermos essa consciência, podemos usar todo o seu tamanho. Mesmo que pudéssemos existir sozinhos, de olhos fechados, com os ouvidos tapados, seríamos já bastante grandes, mas existe algo muito maior do que nós. Fazemos parte dessa imensidão. Somos essa imensidão que, vista daqui, parece infinita.»


4 comentários:

  1. Sentia muito tudo isso mesmo antes de ter lido. Sentia e pratico, desde logo quando me apresento onde Eu só por si não chega, para ser eu. Eu sou Eu, Meu Contrário e Minha Alma... Mas não é apenas esse eu plural que faz com que me identifique com o texto de José Luís Peixoto, são os textos que eu próprio escrevo e os personagens que ponho ao meu lado, à minha frente: "Dona Esmeralda e a Vizinha do 4º Andar, a conversar" ou as "Conversas de Esplanada" são testemunho de que "somos a terceira pessoa do plural" onde o meu sentir se reparte... Excelente texto Manuela... excelente texto, este!!.

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    1. Diz bem, Rogério, a sua multiplicidade de eus e personagens e os seus textos são a demonstração desse nós, dessa terceira pessoa do plural que somos e devemos sentir. Infelizmente não é para isso que somos educados nesta civilização, e é necessário questioná-la profundamente para chegarmos a este nós sentido no eu. Excelente texto de José Luís Peixoto, sim, não podia deixar de o partilhar.

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  2. E é mesmo assim. Necessitamos TODOS de ter isto presente, SEMPRE!

    Se um de nós perde. todos perdemos. Não podemos continuar nesta competição que nos acenam e em que na verdade, todos perdemos.

    1ª alínea do contrato social que cada um de nós subscreve tacitamente ao acordar todos os dias quando não fazemos nada para mudar os termos deste contrato. .

    1) Aceito a competição como base do nosso sistema, mesmo estando ciente que este modo de operação gera frustração na grande maioria de perdedores;

    Mais do que uma mera crítica social o texto do video, destaca os factos perturbantes decorrentes da nossa inegável tendência para o conformismo, a indiferença e a desresponsabilização:

    http://www.youtube.com/watch?v=P2ZgHdshogE

    longooooo abraço


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    1. Pois é, aNaTureza, com a a cooperação em vez da nefasta competição, todos temos a ganhar, mas não é isso que ensinam, quem sabe no futuro as coisas mudem. Aliás, vai ser a única solução para não regressarmos ás cavernas.

      E esta primeira pessoa do plural que somos cada um de nós inclui todas as criaturas, todo o universo: somos todos um, está tudo interligado, como já tantas vezes tens dito! E sentir isso, dá uma sensação de paz inacreditável!

      Como sabes, esse vídeo sobre o "Contrato" também já por aqui passou há uns anos, como não podia deixar de ser, e fizeste muito bem relembrá-lo, pois quem ainda não viu, não deve perder essa urgente reflexão, e parar de aceitar esse contrato!

      Beijinhos e um longo abraço para ti também :)

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