sábado, 19 de novembro de 2011

O Direito ao Delírio



"No século vinte e um,
se ainda estamos aqui,
todos nós seremos gente do século passado
e, pior ainda, seremos gente do milênio passado.

Ainda não podemos adivinhar o tempo que será,
sim que temos, ao menos, o direito de imaginar
o que queremos que seja.

As Nações Unidas proclamaram
extensas listas de direitos humanos,
mas a imensa maioria da humanidade
não tem mais que o direito
de ver, ouvir e calar.

Que tal se começarmos a exercer o jamais proclamado
direito de sonhar?
Que tal se deliramos por um tempinho?,
ao fim do milênio,
vamos fixar os olhos mais além da infâmia
para adivinhar outro mundo possível:

O ar estará limpo de todo veneno que não venha
dos medos humanos e das humanas paixões.

As pessoas não serão dirigidas pelo automóvel,
nem serão programadas pelo computador,
nem serão compradas pelo supermercado,
nem serão assistidas pelo televisor.

O televisor deixará de deixar de ser
o membro mais importante da família.

As pessoas trabalharão para viver,
em lugar de viver para trabalhar.

Se incorporará aos códigos penais
o delito de estupidez,
que cometem os que
vivem para ter ou para ganhar,
em vez de viver
por viver e só.


Como canta o pássaro,
sem saber que canta,
e como brinca a criança,
sem saber que brinca.

Em nenhum país irão presos os rapazes
que se neguem a cumprir o serviço militar,
mas os que queiram cumpri-lo.

Os economistas não chamarão nível de vida
ao nível de consumo;

As crianças de rua não serão tratados
como se fossem lixo,
porque não haverá crianças de rua.

As crianças ricas não serão tratadas
como se fossem dinheiro,
porque não haverá crianças ricas.

A educação não será o privilégio
dos que possam pagá-la,
e a polícia não será a maldição
de quem não pode comprá-la.

A justiça e a liberdade,
irmãs siamesas,
condenadas a viver separadas,
voltarão a juntar-se,
voltarão a juntar-se bem grudadinhas,
costa contra costa.

Na Argentina, as loucas da praça de maio
serão um exemplo de saúde mental,
porque elas se negarão a esquecer
Imagem daqui
os tempos da amnésia obrigatória.

A perfeição,
a perfeição continuará sendo
o aborrecido privilégio dos deuses.

Mas neste mundo,
neste mundo desajeitado e fodido,
cada noite será vivida
como se fosse a última,
e cada dia como se fosse o primeiro."

Eduardo Galeano, Patas Arriba, Buenos Aires, dezembro de 1998

(Texto obtido em: http://www.radialistas.net/portuclip.php?id=1500513, acrescentado ao post em 18/04/2012)

9 comentários:

  1. Com os agradecimentos à Fada do Bosque e à aNaTureza que indicaram este vídeo. Obrigada!

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  2. E antes disso, fui encontrá-lo no blog Optimismo em Construção.

    Pois, a utopia serve para caminharmos...

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  3. Manuela, já conhecia este video através do Optimismo em construção e digo-te que foi das coisas mais bonitas que vi. Se me permites vou deixar aqui um texto que publiquei no Começar de Novo há anos , mas que tem muito a ver com isto. Talvez conheças o autor do livro de onde tirei o texto; é lindo e muito melhor do que as minhas palavras para comentar este video.


    UTOPIA


    « Dou-lhe a minha palavra....UTOPIA ; e ofereço-a como um presente de Natal embrulhado em papel brilhante, decorado com fita acetinada e entretecido nos votos que normalmente se fazem nesta época, de paz, amor,e amizade.A utopia faz com que estas palavras, que pronunciamos por hábito na época natalícia, fiquem prenhes de sentido, inchadas de intenções e de projectos, pássaros esvoaçantes rasgando um céu que se quer cada vez mais azul.
    Ao dar-lhe a minha palavra, ofereço boleia num sonho que o transportará para um mundo que não existe e cujos alicerces assentam na contingência de poder-vir-a-ser. Nesse não-lugar as possibilidades são imensas, é vasto e acolhedor o espaço reservado a novas ideias, é vibrante de desejos o nosso outro eu quando perscruta os cantos, sobe colinas e alarga fronteiras. Nesse não-lugar nós descobrimos o que somos e o que poderemos um dia ser. Basta querer. Basta sonhar.
    O meu presente é feito de intenções, não vive de projectos nem se identifica com planos totalizantes e evangelizadores. Quando ofereço a utopia, ofereço-a embrulhada em papel brilhante, mas não lhe determino a cor. Reservo a quem receba a prenda o direito de reconhecer no brilho do papel a cor que entender. Já a fita acetinada, faço questão que seja verde e que seja macia ao toque, como o é a relva quando desponta no vigor do Verão. Acredito que olhando para ela e sentindo como é macia, quem vier a receber a minha prenda repudie todos os projectos que a possam secar. Confio que saberá regá-la com sonhos e alimentá-la com acções.


    É este o efeito que uma prenda de papel brilhante e fita acetinada pode ter na humanidade.....se for dada a homens de coração puro, poderemos ter o caminho iluminado e descobrir atalhos que nunca suspeitaríamos poderem existir»





    Parte de um texto de Fátima Vieira
    Extraído do livro A minha palavra favorita - Edição Jorge Reis Sá

    Ofereço-ta a ti também, Manuela esta minha palavra Utopia com muito carinho.
    Um beijinho e um bom fim de semana
    Emília

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  4. É fantástico! Este texto estará editado em livro?

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  5. Muito bom, tanto a resposta da pergunta sobre a utopia como o poema.

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  6. Já tinha ouvido e é maravilhoso e estimulnte encontrar seres que pensam assim. Deslumbrante!

    Beijos

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  7. Olá

    Obrigada a todos pelos comentários, e um agradecimento especial à Emília pelo presente "Utopia" que aqui deixou. Muito bonito!

    Que seria de nós sem o direito à utopia, ou ao delírio,como diz Galeano!

    Boa noite e bom domingo

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