quarta-feira, 17 de março de 2010

Desumanização da economia

Pela terceira vez (antes foi aqui e aqui) transcrevo alguns trechos retirados do livro abaixo identificado. Como não quis interferir com direitos de autor, solicitei autorização ao Professor Valdemar Rodrigues, que gentilmente me deu a liberdade de citar o seu livro. Um livro que vivamente recomendo pela abordagem documentada e fundamentada e pela clareza nas ideias e na transmissão das mesmas.

(imagem da net)

" (...)
Fará sentido que o valor das acções de uma empresa suba, portanto que os seus accionistas embolsem rapidamente generosas quantias, quando a administração da mesma anuncia o despedimento em massa dos trabalhadores? Será ético que os investidores prefiram deslocar os seus investimentos para países onde as leis laborais menos protegem os trabalhadores? Não seria urgente desde já separar o PIB bom do PIB mau, que é aquele conseguido à custa da poluição, da precarização de vidas humanas ou até da própria desgraça?
(...)
O problema da desumanização nas sociedades modernas não está pois resolvido, muito pelo contrário. O ideal da sustentabilidade criou a possibilidade de uma profunda reflexão ética sobre este e outros assuntos, mas que, infelizmente, ficou em grande medida por realizar. (...) Pois é unicamente a esfera pública que confere valor aos objectos; não é o labor nem o trabalho; não é o capital nem o lucro nem o material: é unicamente essa «esfera» na qual o objecto surge para ser estimado, exigido ou desdenhado.
(...)
O que faz sentido é reabilitar essa esfera pública, enriquecendo-a com os múltiplos contributos do pensamento humano, libertando-a das causas que a enfraquecem e protegendo-a assim contra os totalitarismos de toda a espécie, sejam eles supra ou infra estatais. Evitar a pior de todas as dificuldades de comunicação entre os seres humanos, a guerra, é hoje tão essencial como ontem, ou porventura ainda mais. Porque o tempo actual pauta-se por essa extrema exigência que coloca ao homem em geral, mas sobretudo aos políticos e ás famílias mais poderosas do planeta que condicionam a acção colectiva.
Nunca as alturas terão sido tão grandes, e nunca tão grandes terão sido as diferenças que separam os dois lados de um mundo que, para o que importa, está moralmente dividido por dentro e por fora das fronteiras nacionais e regionais. Se por um lado hoje existem todas as condições para estimular e desenvolver o espírito de solidariedade entre os povos, essa ideia de universalismo ético que seduziu Kant e ainda seduz contemporaneamente pensadores como Lawrence Kohlberg, por outro, talvez nunca os meios tecnológicos ao dispor daqueles que actuam nos palcos da política e nos bastidores, tenham sido tão tentadores para alimentarem autênticas guerras de titãs, guerras transnacionais friamente calculadas e determinadas nas quais os povos naturalmente não se revêem - ou revêem erradamente, fruto da sua instrumentalização por falsos medos e radicalismos - e para as quais é apenas solicitado o seu contributo como espectadores ou, na pior das hipóteses, como vítimas.
(...)
A importância de uma profunda reflexão ética por parte das escolas de economia parece ser, como já aqui se deu a entender, hoje, talvez mais do que nunca, urgente. São surpreendentes muitas das coisas que o cidadão comum aos poucos vai tomando conhecimento, aceitando impotente essa espécie de deriva económica que varre o mundo contemporâneo. Uma deriva que passa pelos paraísos fiscais, pelas zonas francas, pelos negócios da guerra e do sofrimento humano, pelos tráficos de drogas, medicamentos e seres humanos, tudo isso no mais cruel e evidente desrespeito pelos Direitos Humanos. (...)"

Valdemar J. Rodrigues, em "Desenvolvimento Sustentável - uma introdução crítica", Parte I - Escolas e correntes de pensamento da questão ambiental- As escolas das ciências sociais e o ambiente - Desafios para a ciência económica, Editora Principia, 2009

4 comentários:

  1. Olá Manuela!

    O artigo está muito bem escrito, pondo o dedo na ferida - como costuma dizer-se - afirmando muitas verdades com que cada vez mais gente vai concordando, já que é cada vez é maior o número daqueles atingidos por esta realidade que nos cerca.
    A economia liberal, desumanizda, tomou o freio nos dentes, e parece mesmo ser o único valor que nos pode guiar, nada mais existindo para além dela.Nem tampouco parece existir quem tenha poder ou vontade para inverter este estado de coisas, e aí é que reside o cerne da questão.Já "toda a gente" percebeu que estamos no mau caminho, mas quem detem o poder não quer mudar de rumo...
    Para terminar, vou só referir um recente episódio, ocorrido no Reino Unido. Aqui, uma firma despediu alguns dos seus empregados recorrendo ao meio simples e expedito de lhes comunicar a notícia por mensagem de telemóvel; um texto curtinho foi tido como suficiente para consumar o acto - Sinal dos tempos!
    Isto, como dizem muitos ... já não vai lá só com palvras!

    Um abraço!
    Vitor

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  2. Muito oportuno este texto para reflexão.

    Obrigada, Nanuela.

    Beijinho.

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  3. Olá a todos,
    não quero ser espectadora, não serei e pelo caminho, conseguirei muitos actores. Não vamos deixar que nos estraguem o pensamento.
    Tentemos ser o mais livres que pudermos.

    VIVA A VIDAAAAA!!!

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  4. Estou de acordo com Victor Chuva... infelizmente, isto não vai lá só com palavras... para quem está bem, dói ouvir isto, mas amanhã, será a vez dos nossos filhos e de todas as espécies!
    É este o legado que lhes deixamos?! mesmo aqueles que não têm filhos, deviam pensar a sério nas gerações vindouras! É que esses ainda têm muito para dar e estão desprotegidos, mais do que isso, ficarão abandonados aos predadores completamente indefesos. Cabe-nos a nós repor o mal que outros fizeram, muitos inconscientemente.
    Os predadores querem sangue de certeza. Ninguém se iluda, será isso que mais cedo ou mais tarde irá acontecer.
    Uma excelente reflexão para todos que nos trouxeste

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